sábado, 9 de abril de 2011

0019 - Da necessidade de contemplar o sentido.

“Mau grado numerosas instâncias de sofisticação, não deixa de ser verdade que a nossa linguagem quotidiana e pensamentos rotineiros continuam a funcionar dentro de um dualismo mente-corpo bastante simples. No nosso uso irreflectido de polaridades como psíquico e físico, mental corpóreo, inato e ambiental, não fizemos grandes progressos dentro de esquemas dissociativos da filosofia cartesiana e idealista.(...) Quando nos damos ao trabalho de reflectir, de considerara a evidência, é claro que ficamos certos de que este dualismo grosseiro não é adequado. As suas categorias são irremediavelmente indiscriminadas; as zonas intermédias, tal como as formas de interacção e determinação recíproca, são demasiado numerosas. (...) Estudos recentes sobre a formação da fala humana indicam que existe uma mediação crucial entre, por um lado, a matriz neurofisiológica, ou mesmo neuroquímica, e, por outro, factores a que só podemos chamar psíco-culturais.(...) Por certo que hoje é um lugar-comum honesto dizer-se que a consciência psicológica influi no ambiente circundante, que a consciência psicológica é, de certo modo, a estrutura ambiental, e que as relações de reciprocidade entre imaterial e o material se caracterizam por um retorno dinâmico. Por todo o lado, o velho divórcio entre o espírito e a carne cede a uma metáfora de continuidade muito mais complexa.
                De forma semelhante, está a decorrer uma revisão fundamental de noções tão básica como acaso, probabilidade, lei. O desenvolvimento da física quântica acarretou um debate filosófico de grande intensidade e com grandes implicações na própria base daquilo a que chamamos objectividade. As actuais hipóteses sobre energia, o espaço ou a direccionalidade do tempo são caracterizadas por escrúpulos e provisoriedade sem precedentes; diria mesmo até, por licença poética. A mecanicidade de Laplace ou dos termodinâmicos oitocentistas, se existiu realmente enquanto tal, foi em grande medida posta em questão, não pelos mercadores de mistérios, mas sim pelas próprias ciências exactas e matemáticas. Conjecturas muito recentes na área da cosmologia aceitam mesmo a possibilidade de que as constantes físicas e as leis da relação massa-energia se tenham alterado ao longo da história do Universo. Na esfera das artes, vive-se uma liberdade especulativa sem paralelo.” (George Steiner, Nostalgia do Absoluto, p.:60-61)

Neste pequeno excerto, George Steiner afirma o que já muitas vezes defendi: as próprias ciências "duras" confirmam o indeterminismo e demonstram o absurdo da separação corpo-mente, sujeito-objecto, não fazendo mais que aquilo que a filosofia, paralelamente, já tinha igualmente concluído.

No entanto, um considerável número de pessoas que se movem no mundo da ciência continuam a praticar religiosamente essa compartimentação. Em Arqueologia Pré-Histórica, isto traduz-se em querer perceber o Homem na Pré-História através das suas materialidades, sem ter em conta a sua psicologia e a sua atribuição de sentidos. Trabalhar a matéria e esquecer o sentido, argumentando que se segue a ciência. Mas não é isso que a ciência, hoje, nos diz. Pelo contrário, ela diz-nos que o Homem não é entendível sem considerar a sua psicologia, a sua cultura em relação com o seu mundo material. A crítica a uma separação corpo-mente, sujeito-objecto, é a crítica a uma separação ciências naturais e exactas – ciências sociais. Uma separação que se perpectua anacronicamente graças à especialização. Mas, como Ortega y Gasset bem lembra, a Ciência não tem especialidades, apenas os cientistas as têm. E esse é um problema que eles têm que resolver, depois de o consciencializarem.

António Carlos Valera

3 comentários:

  1. Caro Antonio:

    Estou a ler os seu trabalho "Discurso cientifico em arqueologia" e a gostar bastante, apesar de, obviamente discordar em muitos aspectos. Infelizmente estou a ler "a*s prestacoes" porque para alem do trabalho de laboratorio tenho a defesa de doutoramento quase a chegar (medo...).

    Apenas um reparo. Quando diz

    "as próprias ciências "duras" confirmam o indeterminismo e demonstram o absurdo da separação corpo-mente, sujeito-objecto, não fazendo mais que aquilo que a filosofia, paralelamente, já tinha igualmente concluído."

    Isto nao e* verdade. A fisica qua*ntica revela que ao nivel do sub-atomico nao parecem existir fenomenos deterministicos e podemos falar apenas de "probabilidades". Ao nivel cosmologico, alguma incerteza parece tambem existir. Mas os fisicos relembram sempre que ao nivel do universo observavel, as leis de Newton, Maxwell, Einstein e outros continuam a ser validas, e ha muito pouco espaco para indeterminismo.

    E* preciso evitar o erro dos chamados "pos-modernos" (nada complicados, como dizia a musica dos GNR) que Sokal expos de forma brilhante e ludica, que e* o apropriarem-se dum discurso cientifico que nao compreendem apenas para justificar as suas posicoes filosoficas relativistas.

    Quanto a* separacao corpo-mente os avancos recentes das neurociencias deitam por terra algumas concepcoes classicas dualistas, mas nem todas. E, tanto quanto sei, isso nao confirma a posicao fenomenologica na arqueologia de que podemos aceder a* mente das pessoas do passado atrave*s das experiencias dos nossos proprios sentidos (o que alguns ingleses chamam, de forma depreciativa, "tea-drinking archaeology").

    Ja agora, relativamente a compartimentacao dentro da academia, recomendo este livro que esta muito bem escrito e expoe as diferencas entre ciencias naturais, sociais e humanas ao nivel de metodos, concepcoes teoricas, habitos de trabalho, estrategias de divulgacao de conhecimento e ate* tracos de personalidades dos investigadores. Refere-se tambem a historia e ao que levou ao surgimento desta separacao.

    http://www.cambridge.org/gb/knowledge/isbn/item2326773/?site_locale=en_GB

    Um abraco.

    Hugo

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  2. a) “Isto nao e* verdade”
    Pois, naturalmente que é. De facto, dentro de um mesmo sistema o absoluto pode existir. Mas dentro de um mesmo sistema, o que é o mesmo que afirmar: relativo a esse sistema. Por isso mesmo é fundamental não analisar um sistemas distintos com base exclusivamente nos pressupostos de um outro. É isso que se reclama para a Pré-História.

    Além disso, não sendo eu um especialista na matéria, e assumindo que há em cada um de nós um pouco do “síndroma” de Sokal (quantos filósofos facilmente e ludicamente demonstrariam a incompreensão que reina no espírito de tanto cientista – Ortega y Gasset é particularmente violento aqui), penso que o princípio de indeterminismo de Heisenberg se mantém actual. No processo de conhecimento temos os limites da espécie (físicos e culturais, quando se conseguem distinguir as duas dimensões) e temos os limites das ferramentas que usamos para conhecer (a interferência do microscópio não pode ser anulada), pelo que o conhecimento que produzimos é sempre em relação a eles. Em Arqueologia, como em qualquer outra ciência, poderíamos multiplicar até à exaustão os exemplos destas situações no simples registo de campo.

    b) Quanto à versão de arqueologia fenomenológica que refere, é óbvio que é uma abordagem com muitos problemas. Mas um deles é precisamente esse que recusa: a de que não devemos abordar o passado simplesmente com os nossos pressupostos e experiências de contextos diferentes. A versão historicista de conhecer o passado através da pretensa capacidade de o historiador experienciar em si essas mesmas experiências do passado é, apenas a outra cara da mesma moeda, onde está a igualmente infundada pretensão de conhecer o passado tal qual ele é através da capacidade do observador se extrair ao contexto a partir do qual analisa. O processo de conhecimento é uma relação contextualizada.

    Mas também acrescentaria que não é pelo facto de eu não poder sentir o que um Pré-Histórico sentia que posso simplesmente descartar a ideia de que ele sentia e agia de acordo com o seu sentir. Isto porque, se o objectivo é conhecer o homem, este não pode ser conhecido sem ter em conta o que sente e entende. Escamotear isto é querer conhecer o homem como quem conhece uma pedra. É recusar a dupla hermenêutica que se impõem ao conhecimento do humano. E isso, para mim, não é um posicionamento epistemológico aceitável. Quanto à objectividade, para mim ela significa subjectividade controlada, que é o que me parece que falta aos que acreditam poder escapar à interferência do seu contexto no processo de conhecer.


    c) Finalmente, quanto a uma pretensa superioridade intelectual, de dedicação ao trabalho, de preocupação com a divulgação e até de traços de personalidade, diria que, para além de me assustar um pouco com esta apreciação levada ela às últimas consequências e de me virem à cabeça exemplos perigosos de outras áreas da vida (mas, de facto, a ciência é feita por homens), não só a percebo, como até concordo genericamente com ela. Até porque mais uma vez ela demonstra a importância e a interferência do contexto na produção de conhecimento. E até no texto que está a ler (e aprecio que esteja a gostar) lembro as afirmações desse notável filósofo português, Delfim Santos, quando este afirma que as áreas disciplinares e até as profissões, geram racionalidades próprias, formas de pensar e padrões específicos de funcionamento do cérebro: uma vez mais o contexto.

    De facto, parece que temos perspectivas distintas, mas aprecio esta possibilidade de amena conversação e debate, normalmente “impossível” por estas bandas. Porque é assim que se aprende e cresce intelectualmente, no confronto de ideias e não na simples satisfação proporcionada pelo consenso. Esta é, precisamente, uma das razões da criação deste blog.

    Um abraço

    António Valera

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  3. O "aqui" não ficou com o link:
    http://www.nia-era.org/component/option,com_myblog/show,0241-Memoria-2.html/Itemid,57/

    AV

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