A Zooarqueologia é entendida como a disciplina que estuda dos restos de animais provenientes dos sítios arqueológicos numa perspectiva antropológica sendo o seu principal objectivo a compreensão do comportamento humano na sua relação com o meio ambiente envolvente, distinguindo-se da Arqueozoologia que se debruça sobre a perspectiva biológica da evolução das espécies animais sob influência do comportamento humano.
Surge na primeira metade do século XX, mas é na década de 60, com a implantação da designada Nova Arqueologia, que se afirma, nomeadamente com o desenvolvimento de uma metodologia própria, assumindo inclusivamente uma enorme importância como estudo actualístico. Com o desenvolvimento das correntes pós-processualistas assume um novo objectivo: a compreensão da dimensão social e cultural da relação do Homem com o outro animal.
Beneficia largamente da introdução do conceito de contexto na Arqueologia, primeiro com o desenvolvimento da Middle Range Theory por Lewis Binford e Michael Schiffer e mais tarde com a designada Arqueologia Contextual de Ian Hodder que eleva o conceito ao “contexto de uso” através da aplicação da hermenêutica.
Na actualidade, no espaço europeu, o desenvolvimento de estudos arqueofaunísticos de contextos históricos, permitiu a criação de interfaces entre os estudos das faunas e outras áreas do saber, como a História, a Etnografia e a Antropologia que rapidamente tiveram eco na produção científica sobre épocas pré-históricas. Assiste-se, assim, a um abandono progressivo da perspectiva estritamente economicista e funcionalista na interpretação das associações faunísticas para se começarem a abrir novos caminhos na interpretação dos restos faunísticos em que os restos são entendidos como reflexo de organizações politicas, sistemas de crenças, estatuto social e construção de identidades.
A introdução da Zooarqueologia na plataforma de interdisciplinaridade que pretende ser o CEOPH tem todo o sentido e surge como consequência desta evolução epistemológica, principalmente no que diz respeito à questão da relação Homem/Animal. Esta participação tem um objectivo muito claro, a promoção do debate sobre a interpretação das associações faunísticas em contextos arqueológicos à luz da contextualização de novas linhas de investigação que poderão estender-se da Antropologia à Psicologia Social ou Arqueologia Cognitiva.
Cláudia Costa
Eis outras das temáticas que me interssam neste âmbito: os fundamentos ontológicos sobre os quais se alicerçaram as relações entre homem e animal no Neolítico e no Calcolítico.
ResponderEliminarSão as nossas categorias actuais adequadas para detectar e apreender toda a complexidade que pode envolver esta relação?
Se pensarmos, por exemplo, que lidamos com comunidades ainda imbuídas de forte animismo, nem as nossas categorias modernas de ser vivo / não vivo serão adequadas, porque uma montanha, um rio, uma rocha, podem estar tão "vivos" como um homem. E já existiria a categoria mental de "animal"? Esta categoria só pode emergir quando se opera um destacamento ontológico completo do Homem relativamente à Natureza, onde ele se põe de um lado e todos os outros do outro. Estaria isto já plenamente instituído no Neolítico? Palavras como "natural" e "artificial" (as correspondentes naturalmente) fariam parte do léxico da época? É que a simples existência destes termos implica toda uma diferente ontologia do mundo e das várias entidades que o povoam.
Seriam estes animais "fauna"?
Nem hoje o são. Como dizia há dias o António Castelo, toda a nossa relação com o mundo é emocional e impõe níveis de antromorfismo (as árvores "crescem", os rios "correm", as aves "cantam"). De facto, a grande maioria das pessoas (para não dizer todas) não tem (nem pode ter) uma relação "científica" com o mundo no seu quotidiano. Muito menos naquelas épocas.
Há pois que investigar os termos dessas relações e as suas dinâmicas de transformação, indo além de identificar e contabilizar espécies, calorias, idades de abate, marcas de corte, patologias de esforço (mesmo que tudo isto seja já muito e muito importante).
E porque há um silêncio sobre os animais (e as suas relações com os humanos) que existiam há época e não aparecem (ou são raros) no registo arqueológico?
Os fundamentos ontológicos sobre os quais se alicerçaram as relações entre homem e animal no neolítico e calcolítico são realmente um tópico interessante, partindo da ontologia como estudo do ser enquanto ser, e do estudo da relação entre seres através da Antropologia, Sociologia ou da Psicologia social. Sou da opinião que as actuais categorias “ser vivo/não vivo” não são efectivamente adequadas, pelo menos nos parâmetros vigentes na nossa sociedade, pois a última (“ser não vivo”) aplica-se às existências que não vivem e não às existências que deixaram de viver e que são, na sua essência, seres vivos que cessaram a sua vivência (“seres mortos”). Contudo, é exactamente nestes períodos que surge a domesticação, num continuum simbiótico, resultando sobretudo de uma selecção artificial posto que a natural se apresentaria subsidiária. Ingold, por exemplo, defende que a economias agro-pastoris se diferenciavam pela modificação do “direito” dos animais: de “animais mortos” incluídos nos sistemas de divisão de produtos de caça, passam a “animais vivos” nas sociedades onde se dividiam os seus direitos entre os donos privados. Estaríamos perante um processo sem uma ruptura abrupta, um processo de gradualidade baseado no controlo cultural (e físico) dos animais pelo homem? Aliás, o homem nasce e morre animal, ainda que exista como animal e enquanto pessoa. Mesmo que não existisse a categoria mental de “animal”, alguma deveria existir porquanto a acção humana, suas possibilidades e suas repercussões no processo de domesticação, poderão ter originado esse mesmo destacamento ontológico do Homem relativamente à Natureza (pelo menos nos seres domesticados). Tal aspecto, ainda que provavelmente não tenha sido plenamente constituído no Neolítico quiçá não estaria eminente. Será que a relação (emocional? cognitiva?) e distinção (lexical? social?) entre o “natural” e o “artificial” não estaria pelo menos latente?
ResponderEliminarNelson, essa é precisamente a questão. Ou seja, um entusiamante programa de investigação.
ResponderEliminarEu entendo as sociedades Neolíticas /Calcolíticas como sociedades de transição em termos de estruturas metais entre cosmovisões essencialmente animistas (visões do mundo em que tudo está dentro) e essencialmente religiosas (em que o que é transcendente se começa a instituir como progressivamente exterior - os deuses criadores que geram o mundo, mas estão para além dele). Entendê-las passará por um programa de investigação que procure perceber como essa dinâmica de transformação cosmológica se vai processando. Ou, como numa cosmovisão neolítica, se vão anunciando as futuras visões do mundo e do humano.
A questão da domesticação, como bem sublinha o seu comentário, é aqui central. Ela implica, por si só, profundas implicações na percepção que o homem desenvolve sobre si próprio.
Desenvolvi esta temática num texto que está há algum tempo para publicação na revista Almadan, mas que por não estar ainda publicado me condiciona na sua divulgação.
Mas que me motiva é a necessidade de induzir na Arqueologia portuguesa uma atenção a todas as dimensões que o processo de domesticação implica, para além das estritamente económicas.
É importante para a Arqueologia portuguesa, entendida enquanto ciência social, que os jovens arqueólogos se interessem por estas problemáticas e as coloquem na sua própria agenda pessoal enquanto estudantes e arqueólogos (e, acrescentaria, enquanto pessoas, pois como não me canso de dizer, todo o conhecimento que produzimos é profundamente ontológico, ou seja, constrói-nos).
É que esta página sobre ontologias Pré-Históricas contém uma armadilha para os incautos. Ela é uma página também sobre a nossa própria ontologia.