sexta-feira, 18 de março de 2011

0016 - Arqueologia e Ciências Cognitivas

As problemáticas das ciências cognitivas aplicadas à História e Arqueologia vêm-me interessando cada vez mais, nomeadamente para a abordagem dos processos de neolitização e da emergência das tradicionalmente designadas “sociedades complexas”. Existirá uma estrutura básica de funcionamento da mente humana ou poderemos traçar-lhe percursos históricos? Poderemos relacionar formas e dinâmicas de organização no espaço e no tempo, formas de vida, visões do mundo, com transformações da mente? Estas problemáticas têm sido tratadas pela Arqueologia essencialmente no âmbito dos estudos relacionados com os trajectos da hominização até ao Homem moderno, mas têm sido menos consideradas na Pré-História Recente.

Ora um dos aspectos mais interessantes em tratar estas questões em sociedades constituídas por homens anatomicamente modernos é que permite realçar o facto de que a transformação das estruturas mentais ultrapassa a questão da evolução física, sublinhando o papel da cultura na estruturação e reestruturação das formas de pensamento. Como sustenta Merlin Donald, “a cultura pode, literalmente, reconfigurar os padrões de uso do cérebro”. Ou, por outras palavras, que implicações têm a emergência da agricultura e a domesticação, por exemplo, nos modos (versões para utilizar a terminologia de L. Strauss) de funcionamento da mente e nas formas como o Homem racionaliza o mundo? Ou, ao contrário, que implicações têm para aa dinâmica da neolitização alterações cognitivas que se processam durante o Paleolítico Superior?

A relação com as problemáticas das ciências cognitivas e com os desenvolvimentos que se vão realizando noutras áreas que se dedicam ao estudo da mente humana, sejam elas de pendor mais científico ou filosófico, são uma área a que a Arqueologia portuguesa (sobretudo a que se dedica à Pré-História) também se deveria abrir.

Neste contexto de percepção da historicidade do funcionamento das estruturas cognitivas, tanto na sua dimensão individual como colectiva, uma abordagem que utilize as potencialidades da analogia entre o estudo do desenvolvimento das estruturas operativas dos processos cognitivos no indivíduo actual e os de diferentes contextos históricos, poderá ajudar-nos a dar conta de distintas formas de pensar e de construir identidades e, desta forma, criar possibilidades a uma arqueologia contrastante dos processos de identificação, viabilizando discursos não essencialistas sobre as identidades do passado.

“(...) se adoptadas as devidas precauções, é possível comparar as formas de pensar de contextos remotos com os tipos de processos de pensamento exibidos e os tipos de medições utilizadas nos contextos da tradicional escolaridade ocidental”
(Gardner, 2002: 347)

Referências:
Donald, Merlin, (1999), Origens do Pensamento Moderno, Lisboa, Fundação Calouste GulbenKian
Gardner, Howard (2002), A nova ciência da mente. Uma história da revolução cognitiva,Lisboa, Relógio D'Água.

António Carlos Valera

6 comentários:

  1. "Neste contexto de percepção da historicidade do funcionamento das estruturas cognitivas, tanto na sua dimensão individual como colectiva, uma abordagem que utilize as potencialidades da analogia entre o estudo do desenvolvimento das estruturas operativas dos processos cognitivos no indivíduo actual e os de diferentes contextos históricos, poderá ajudar-nos a dar conta de distintas formas de pensar e de construir identidades e, desta forma, criar possibilidades a uma arqueologia contrastante dos processos de identificação, viabilizando discursos não essencialistas sobre as identidades do passado"

    A critica obvia a este tipo de "cognitive archaeology" tao queridas ao Steven Mithen e Colin Renfrew e*: como passar dos dados fisicos reais que vem da cultura material (objectos, arte, etc) para a uma narrativa fiavel sobre aspectos cognitivos de populacoes passadas? Como evitar cair na armadilha de contar uma "just-so story", ou ver nos dados aquilo que, consciente ou inconscientemente, queremos ver?

    Na minha modesta opiniao nao se pode.

    Seria interessante o seguinte exercicio. Aplicar os metodos deste tipo de arqueologia cognitiva a cultura material do mesmo tipo da que pode ser encontrada no registo arqueologico mas proveninete duma cultura actual, radicalmente diferente da do investigador. Por exemplo, oferecer fotografias de murais ou objectos ceramicos, por exemplo Japoneses, a um investigador Portugues, sem que lhe seja mencionada a origem. O investigador aplicaria estes metodos, produziria uma narrativa sobre os aspectos sociais e cognitivos desta cultura que depois seria oferecida a um outro investigador nativo da cultura original (um arqueologo japones). Posso estar enganado, mas desconfio que o ilustre arqueologo Niponico explodiria de riso.

    Trata-se duma "thought experience", claro, mas creio que isto ilustraria a grande complexidade das culturas humanas de qualquer periodo historico (ou pre-historico) e a inutilidade de tentar conhecer aspectos sociais e culturais sobre essas sociedades (para la dum nivel muito superficial) com base em vestigios materiais pontuais e incompletos, quando as ciencias sociais (e.g. sociologia e antropologia) nem sequer possuem um metodo consensual e rigoroso para o fazer com as sociedades actuais.

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  2. Caro Anónimo. De momento, por motivos pessoais, não disponho do tempo necessário para lhe responder a este comentário e aos que deixou em posts anteriores. Não deixo, contudo, de estranhar o anonimato. É que me parece uma postura muito pouco científica. Não entendo o receio. De momento, apenas lhe agradeço os comentários, que sem dúvida contêm matéria para discussão, e lhe digo que é bem possível que esteja engado relativamente ao comportamento do arqueólogo nipónico. Uma boa leitura para entender o que quero dizer seria ler os Serões no Japão do português Wesnceslau de Moraes (fica a sugestão).

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  3. Hugo Rafael Oliveira21 de março de 2011 às 14:51

    Ah, mil perdoes. Chamo-me Hugo (hugorco@yahoo.co.uk). Estes blogs costumam requerer contas do Google e afins pelo que preferi a opcao “ano*nimo” para deixar uma resposta. Nao queria ser antipatico nem inoportuno, peco desculpa se pareci. Interesso-me bastante por teoria arqueologica e filosofia, embora tenha, obviamente, muito a aprender em ambos os campos. Gostei francamente deste blog e deste grupo do qual so* tomei conhecimento ontem. Fazem falta espacos de discussao sobre teoria arqueologica. Do muito pouco que vi em Portugal sinto fazer parte duma pequena minoria que ainda advoga abordagens cientificas e racionais ao estudo do passado humano.

    Como algue*m formado em ciencias naturais (Biologia) e que depois fez mestrado e doutoramento em Arqueologia (transicao do Meso- para o Neolitico) mantenho um grande cepticismo perante abordagens ontologicas ao passado ou, obviamente, abordagens pos-modernas, pos-processualistas, fenomenologicas, etc (e aqui sei que estou a abusar um pouco ao colocar estas diferentes abordagens no mesmo saco, mas pertencem, diria eu, a* mesma familia na Historia das Ideias). As narratvas construidas por estas abordagens sao em geral pouco cientificas, nao raras vezes nao sao apoiadas nos dados materiais concretos, e nao podem ser nem demonstraveis por experimentacao nem falsificaveis. E, com raras excepcoes, sao mais proximas duma tentativa artistica e quase romantica de “olhar para o passado” do que duma tentativa de obter informacoes mais ou menos seguras sobre sociedades passadas. Foi algo que me desiludiu imenso no contacto com a arqueologia, porque desde crianca que era um apaixonado pela arqueologia e de alguma forma sempre achei que a arqueologia era uma abordagem racional, metodica e experimental ao passado. Mas se alguma vez o foi acho que deixou de o ser desde os anos 80 com o surgir da "arqueologia interpretativa", "pos-processualismo" e outras abordagens.

    Embora concorde que qualquer narrativa sobre o passado e* bem-vinda e diferentes perspectivas sao sempre importantes contributos. Pela Historia das Ideias e* fa*cil observar que as fases de predominio da razao sao seguidas sempre de outras fases de critica a razao (estoicismo vs epicurismo, iluminismo vs romantismo, positivismo vs pos-modernismo, etc), numa especie de dialectica Hegeliana (as fases de sintese tendem a ser breves ou por vezes inexistentes, parece-me). Desde que a escavacao seja bem feita e os dados arqueoogicos bem apresentados, diferentes geracoes irao olhar para os mesmo dados e sugerir diferentes interpretacoes, explicacoes e abordagens.

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  4. Hugo Rafael Oliveira21 de março de 2011 às 14:51

    Nao obstante, a teoria arqueologica e o back-ground teorico influenciam bastante o proprio modo como uma escavacao e* feita. Em Portugal, por exemplo, onde predomina a escola pos-moderna francesa, sao rarissimas as escavacoes onde se procede a flutuacao de solo removido para estudos de arqueobotanica, sao raras as intevencoes por um geo-arqueologo, e quase nunca ha um cuidado com a manipulacao de vestigios humanos e animais para a possiblidade de se fazerem estudos de DNA. A zoo-arqueologia vai sendo feita porque involve objectos de dimensao visivel (ossos) e por vezes e* feita uma analise quimica de materiais e residuos mas apenas por algumas poucas escolas (a Universidade do Algarve e* uma saudavel excepcao no panorama da arqueologia Portuguesa e dos poucos sitios onde se pode dizer que exista uma massa critica suficiente para a existencia de ciencia arqueologica, mas isto claro e* uma opiniao pessoal). Ja estudos de “simbolos”, “idolos”, “pinturas rupestres”, “rituais”, etc, abundam cada vez mais na literatura.

    Embora me pareca que nunca saberemos a "verdade" (sou um fa de Popper) acho que possuimos criterios para distinguir uma narrativa de outra e de avaliar a sua aproximacao a essa "verdade" inatingivel. As abordagens hermeneuticas, ontologicas e pos-processualistas ao registo arqueologico indicaram muito correctamente que qualquer investigador tem os seus preconceitos e ideias feitas as quais deve estar atento porque irao afectar a interpretacao e narrativa dos vestigios arqueologicos. Mas esta foi a sua unica contribuicao, pois nao ofereceram uma visao valida ou inovadora sobre o passado. Esconderam essa falta de ideias por detras de prosa densa e inteligivel (o chamado "pos-modernes"... um pouco a* semelhanca dos Sofistas gregos que em troco de um pagamento faziam eloquentes e impressionantes discursos) e dum relativismo cobarde em que “qualquer narrativa e* tao va*lida como outra qualquer”. Este relativismo extremo, felizmente cada vez mais raro, e* algo que considero um fracasso intelectual e, como um cidado com ideias politicamente bem de Esquerda, considero extremamente perigoso. Afinal, alguem com uma narrativa sobre o passado recente que diga que o Holocausto nunca existiu fica tao legitimado como alguem com uma narrativa que afirme com certeza absoluta que tal horror, obviamente, existiu.

    Quanto a Wesnceslau de Moraes, tanto quanto percebi por uma visita relampago a Wikipedia, viveu muitos anos no Japao (fiquei muito curioso de ler o livro, obrigado pela sugestao). A ideia meio-louca que eu sugeria era simular a interpretacao duma cultura radicalmente diferente da nossa partindo apenas de objectos materiais semelhantes, e com igual grau de fragmentacao, aos que se podem encontrar numa escavacao arqueologica (algo parecido com o que em ciencia se chama "calibracao" ou "controlo positivo"). Isto serviria para estabelecer um limite as interpretacoes que podem ser feita com base nos vestigios materiais que o registo arqueologico nos oferece. Mas desconfio que o uso de estas duas palavras, “experimentacao” e “cultura”, na mesma frase desagradaria a muita gente nas ciencias sociais e humanas.

    Espero poder continuar a discutir estes e outros aspectos neste blog.

    Um abraco amigo.

    Hugo

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  5. Caro Hugo

    Só hoje li esta sua (longa) resposta e gostei do tom e do conteúdo. Estive ausente alguns dias deste circuito e terei todo o gosto em debater este assunto consigo, porque discordamos em muito, mas parece-me que há predisposição para uma conversa séria. E o motor da ciência é o "disensus" (mais que o cepticismo, embora este também seja importante).
    Agora, as questões que se levantam dão pano para mangas. De facto, não têm fim à vista.
    Mas tentarei, a pouco e pouco, e se calhar com um post ou outro, ir debatendo as problemáticas que enunciou.
    Entretanto, se quiser saber, com outro detalhe, o que penso em termos epistemológicos e até gnoseológicos, pode consultar este texto: "Discurso científico em Arqueologia: a necessidade de o conhecimento se conhecer", que está diponível aqui:

    http://www.nia-era.org/component/option,com_docman/task,doc_download/gid,22/Itemid,55/

    Já agora, porque não se torna membro e não publica em post os seus pontos de vista?

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