quinta-feira, 3 de março de 2011

0008 - Por uma Arqueologia da fragmentação

A fragmentação é uma estratégia social ao serviço da comunicação e da gestão de relações. No caso concreto dos objectos, esta questão leva-nos a questionar o conceito de “unidade” ou, se quiserem, de “todo”. Se aceitarmos que o sentido faz parte da constituição do objecto social (a Arqueologia trabalha com objectos sociais e não simplesmente com objectos físicos), situações aparentemente paradoxais podem ocorrer:

a)     Uma metade pode, pelo significado que assume, ser de facto o todo (a unidade). É esse, por exemplo,  o princípio da hóstia, que, fragmentada, não deixa de representar o corpo de Cristo. Trata-se do processo psicológico de “participação” em que as essências do todo estão presentes na parte, pelo que a parte representa (ou é) o todo.
b)    Por outro lado, uma unidade (um todo) pode representar (ser) apenas uma parte. É o caso das alianças, que uma é apenas parte e o todo são as duas. A unidade é, aqui, apenas metade.

Ou seja, a ontologia dos objectos é algo que temos que ter em consideração quando estudamos artefactos e contextos pré-históricos. A fragmentação pode ser intencional e traduzir sentidos. É importante despistar a interferência da tafonomia, mas, como dizia há dias, só vemos o que estamos preparados para ver: porque será que ocorrem tantas metades de objectos em contextos Pré-Históricos bem preservados? Porquê precisamente metades? Ou segmentos de corpos (humanos ou de animais)?

E, no entanto, dividir e distribuir, como forma de ligar e, paradoxalmente, unir , é algo que mantemos como estratégia nos complexos sistemas das nossas relações sociais. A partilha une, e nisto a fragmentação joga um papel central. A fragmentação do objecto, do corpo, da comunidade. São níveis de uma prática que me parece central para o entendimento das comunidades pré-históricas.

Em português:
VALERA, António Carlos (2010), "Marfim no recinto calcolítico dos Perdigões (1): "Lúnukas, fragmentação e ontologia dos artefactos", Apontamentos de Arqueologia e Património, 5, Lisboa, NIA-ERA Arqueologia, p. 31-42. (link disponível na pagina de Publicações de Membros)

Em inglês:
CHAPMAN, J. (2000), Fragmentation in Archaeology: people, places and broken objects in the Prehistory of South-Eastern Europe, London, Routledge.
CHAPMAN, J. e GAYDARSKA, G. (2007), Parts and wholes: fragmentation in prehistoric context, Oxbow Books.

António Carlos Valera

3 comentários:

  1. Em contexto funerário, por exemplo, a par de "partes" ou "segmentos" de corpos de animais, muitas vezes regista-se a ocorrência de ossos soltos, sem marcas de desarticulação intencional. Isso implica que, pelo menos nalguns casos, determinados ossos de animais sejam recuperados, após decomposição de tecidos moles, para depois serem redepositados em determinados contextos. Neste caso, parece-me que não existe "fragmentação" no sentido que se poderá aplicar a um fragmento cerâmico, mas existe claramente a re-utilização de uma "parte" (ou de um "todo") de um animal.

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  2. Não estou totalmente de acordo contigo Cláudia. E por esta razão.
    Um esqueleto decomposto não deixa de ser uma unidade. E a selecção de parte desse esqueleto para ser retirada e redepositada não deixa, por isso, de ser um acto de fragmentação de uma unidade. Há que não confundir o conceito de fragmentação como um simples “partir” ou “desmembrar” um objecto inteiro ou um corpo não esqueletizado. A fragmentação é a redução de uma qualquer unidade a partes e isso é um processo tanto físico como mental.
    Pode-se segmentar um corpo de uma pessoa acabada de falecer e depositar uma metade ou partes. Pode-se, perante um corpo já esqueletizado, retirar uma metade (ou partes) e depositá-la noutro lugar. Em ambas as situações estamos perante fragmentações que terão o seu sentido.
    Por exemplo, uma deposição secundária que resulta já de processos de segmentação de unidades prévias, constitui-se ela própria como uma nova unidade. E essa nova unidade é, ela própria, susceptível de novos processos de fragmentação. E assim sucessivamente.
    O nosso problema é que todos estes processos são extraordinariamente difíceis de detectar arqueologicamente, mesmo quando estamos para eles alertados. O que me deixa muito preocupado ante a ideia de que um “depósito secundário” possa ser entendido como simplesmente uma “segunda” deposição. É que, de facto, pode ser uma terceira ou quarta ou quinta...

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  3. A "fragmentacao" pode ser tafonomica e perfeitamente casual. Pode resultar duma intencao funcional (por exemplo, depois dum animal morto poderem-se utilizar certos ossos mas descartar outros). Parece-me que tentar "adivinhar" significados sociais com base em dados tao escassos e* no minimo infrutifero e na melhor das hipoteses um exercicio artistico (algo tipico de abordagens pos-processualistas) mas com pouquissima validade cientifica.

    "E, no entanto, dividir e distribuir, como forma de ligar e, paradoxalmente, unir , é algo que mantemos como estratégia nos complexos sistemas das nossas relações sociais."

    Exacto, as relacoes sociais sao complexas. E tentar deslindar as relacoes sociais de sociedades passadas com bases em "fragmentacoes" ira apenas produzir, na minha modesta opiniao, conhecimento dubio e, passo a expressao, fragmentado.

    "A partilha une, e nisto a fragmentação joga um papel central. A fragmentação do objecto, do corpo, da comunidade. São níveis de uma prática que me parece central para o entendimento das comunidades pré-históricas."

    Sim, mas como? Tentar entender comunidades pre-historicas com base em objectos fragmentados e* um exercicio de pura especulacao, de "educated guessing", nao produz conhecimento novo de qualidade(ou muito pouco).

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