segunda-feira, 28 de março de 2011

0017 - Acesso ao passado ou o espelho do presente

Os problemas que têm marginalizado o interesse por estudos ontológicos em Pré-História, gerando cepticismo sobre a sua viabilidade, são vários, uns de natureza epistemológica, outros de natureza ela própria ontológica:

a)       Uma visão essencialista do homem, que impede de reconhecer o carácter histórico das concepções de se ser humano;
b)       A ideia de que o discurso científico é um conhecimento objectivo sobre o real e não uma relação com o real que produz uma representação sobre esse real, que não é com ele totalmente coincidente;
c)        A ideia de que pode existir uma Teoria Geral do Conhecimento e de um único método científico;
d)       A ideia, decorrente da anterior, que as Ciências Sociais só terão o estatuto de ciência se utilizarem o método das Ciências Exactas ou Naturais;
e)       A ideia de que a validação científica se restringe à validação por confirmação empírica;
f)         A ideia de que o presente não pode falar sobre o “sentido” no passado (sobretudo Pré-Histórico), devido aos problemas que a distância causa à hermenêutica;

entre muitos outros, mas para já, chegam estes.

Não me vou referir, naturalmente, de uma só vez a todos. Mas gostaria de começar pelo último, reproduzindo uma linhas que escrevi (texto global pode ser obtido aqui) em 2006.

“O desenvolvimento dos discursos da contingência tiveram como consequência, nas ciências da História, a instalação de um certo cepticismo relativamente às possibilidades de relação entre os discursos disciplinares e o passado que procurariam reflectir. Este crescente cepticismo desenvolveu uma percepção dos discursos da História ou da Arqueologia como presentistas, isto é, de que apenas reflectimos o presente quando falamos do passado. Esta inexorável prisão ao presente seria tanto mais constrangedora quanto mais nos afastamos no tempo do nosso objecto. Ao contrário da crença positivista, o distanciamento não é considerado como “objectivador”, mas como “subjectivador”. É hoje comum a argumentação de que a sociedade ocidental é a que revelará maiores dificuldades em falar das comunidades pré-históricas, porque será a que está mais distante em termos culturais globais destas sociedades que pretende estudar. Na concepção do mundo estamos condicionados pelos conceitos de que dispomos e pelas experiências que temos. Hoje vivemos num mundo racionalizado pelos crivos linguísticos da ciência moderna e experimentado, vivido e interpretado de formas que serão muito diferentes das desse passado longínquo. O nosso aparelho conceptual dota-nos de uma bagagem analítica que nos permitiu passar do passado enquanto mito a um passado racionalizado pela linguagem científica explicativa e compreensiva, ao mesmo tempo que contribuiu para nos afastar dos esquemas mentais que então operavam, tornando o processo de os entender bem mais complicado, mesmo quando mediado por contextos que concebemos como mais próximos desses passados. A própria ontologia seria diferente da nossa pois, como será argumentado no Capítulo 11, não existe uma essência humana a-histórica, pelo que ser humano há 5000 anos seria diferente de ser humano hoje. Como refere Hill (2000), a perspectivação de determinados aspectos da vivência humana como a-históricos gera um sentimento de familiaridade e de continuidade que dá origem a universalizações que estimulam a aposição ao passado de perspectivas presentes e de premissas de senso comum actual e permitem a construção daquilo a que chama um “passado familiar”. Assim, e como nos propõe o mesmo autor, a resposta à questão da viabilidade do “acesso” ao passado assenta na resposta a uma outra pergunta: conseguimos nós reconhecer um passado diferente? A resposta está, para o autor, na nossa capacidade de construir uma “Arqueologia Contrastante” que permita que, no diálogo que se estabelece entre presente e passado, este último também se possa exprimir.(...)

Poderá o passado ser actualmente pensado nos termos intelectuais do passado? Naturalmente que não. O alcance da minha cognição é o alcance dos meus conceitos. Pergunto então, como poderei aspirar a pensar o passado pré-histórico nos seus termos se nem sequer conheço as suas linguagens? Não se trata, pois, de aspirar, através de uma outra formulação retórica, à pretensão positivista de descentração presentista, nem à aspiração historicista de “entrar” na personagem histórica e reviver o passado tal qual ele aconteceu. Trata-se de assumir que os homens no passado terão sido diferentes em termos ontológicos e culturais (embora talvez não de forma tão radical como, por vezes, se parece conceber), que tiveram diferentes visões do mundo, diferentes relações com o espaço e com o tempo, que atribuíram diferentes sentidos às coisas e às suas próprias acções, mesmo que estas se pareçam formalmente com as nossas. Mas a questão mantêm-se: como entender essas diferenças? Como concretizar essa Arqueologia Contrastante? (...)

De facto, é evidente que qualquer trabalho arqueológico é um acto contemporâneo de leitura, que um contexto arqueológico é uma “realidade” presente, lida hoje, por alguém que não pode fugir às condicionantes do seu tempo. Não menos verdade será que os passados, sobretudo os mais distantes, terão sido substancialmente diferentes do(s) nosso(s) presente(s). Mas aquilo com que nós, arqueólogos, nos relacionamos no presente é algo que nos chega das profundidades do tempo e que, por mais transformações tafonómicas ou outras que tenha sofrido, mantém níveis de relação com o passado em que teve origem. O sítio está num determinado lugar e não noutro; existem determinadas cerâmicas e não outras; documentam-se umas tecnologias, outras não; as arquitecturas assumem determinadas características e não outras e os espaços organizam-se de certas formas entre outras possíveis, etc. Tudo isto, embora faça parte de leituras realizadas no presente, se vincula ao passado, às opções então tomadas, às vivências então existentes. Essa vinculação permite que se estabeleça a relação e viabiliza a Arqueologia como disciplina. Se todos os discursos sobre o passado são feitos a partir de um dado presente, se lhe são implacavelmente relativos, é bom ter consciência que revelam um esforço de relação entre subjectividades presentes e subjectividades passadas, as quais estão incutidas, de forma mais ou menos codificada, nas materialidades (no seu sentido lato) que nos chegam e, de certa forma e até certo ponto, na nossa própria existência, já que é do “nosso” passado que estamos a falar.
Assumir a relação, a inter-subjectividade, significa aceitar as diferentes contextualidades e alargar o nosso pensamento a alternativas plausíveis, que nem sempre são passíveis de ser demonstradas empiricamente, mas que possibilitam que, face ao nosso quadro formatador, se caminhe no sentido de uma relação em que “the difference of the past reveal itself as itself” (Thomas, 2004: 238). Note-se a subtileza da expressão de Thomas: não é deixar o passado revelar-se, mas sim a diferença do passado.”

António Carlos Valera

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